Os louvores do diabo

(adaptado do texto do Pr. Wagner Antonio de Araújo)

"Sujeitai-vos a Deus, mas resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós" (Tiago 4,7)

Ah, se o nosso discernimento fosse apurado! Quantos dissabores evitaríamos! Mas, que se há de fazer?

Jesus disse que Judas Iscariotes era filho do diabo. Chamou-o também de diabo e filho da perdição. Certa feita até Pedro foi identificado como Satanás, ao tentar convencer o Senhor de que o Seu sacrifício poderia ser evitado. Assim, não estou cometendo nenhum erro ao afirmar que o diabo está presente em nossa igreja. Aliás, em muitas igrejas, pois nenhuma é melhor ou pior, se for realmente igreja de Jesus. E o diabo assiste em todas elas, na qualidade de joio no meio do trigo e Judas no meio dos apóstolos.

E o que o diabo faz em nossa igreja?

O diabo está lá para tumultuar, para criar confusão, para iludir, para criar partidos, para corromper. É o seu papel tentar os filhos de Deus. E como tenta! Agora, a tentação, para ser tentação que preste, tem que ser apetitosa, gostosa, desejosa, pois, caso contrário, seria muito fácil resistir a ela. Então ele vem disfarçado. Disfarça-se de gente de Deus, de crente, de líder, de mulher, de adorador, e como se torna atuante!

Quais as coisas que o diabo gosta de fazer entre os crentes? Há coisas que ele faz para nos confundir. Coisas muito boas, que nós fazemos também.

Ele gosta de cantar. Ah, e como canta! Em igrejas tradicionais ele exige milimetricamente que os hinos sejam cantados e entoados corretamente. Ele canta, às vezes sabe tudo decór! Em igrejas pentecostais ou comunidades, ele vibra, pula, canta, chora, ele é o mais entusiasmado do auditório. Às vezes até inventa novos cânticos. Nos momentos emotivos dos hinos, ele chora, levando as pessoas próximas também às lágrimas. Se for o dirigente, então, nem se fala: o louvor é fenomenal - todos ficam sensibilizados.

Ele gosta de falar. Ele conhece a bíblia muito bem, e sabe aplicá-la perfeitamente! Sabe o endereço de textos difíceis e sabe usá-los com extremo cuidado e sabedoria. Se aconselha a alguém, faz uma verdadeira pregação "a la carte", distante, mas profunda. Ele gosta de concorrer em concursos bíblicos, gosta de decorar salmos inteiros, aprende com facilidade lições para ensinar na Escola Bíblica, anota tudo para não esquecer. Sua bíblia é bem marcada e demonstra ser muito bem usada.

Ele está sempre pronto a fazer alguma coisa em prol da igreja ou em prol do líder. Se precisarem dele para trabalhar com favelados, ele é o primeirão da lista. Se tiver vigília, ele não faltará. Quando há reunião de líderes, ele está sempre presente. Não tem tempo ruim para o trabalho de departamento ou de igreja. Ele distribui folhetos, participa de cultos ao ar livre, ajuda a fazer palhaçadas nas atividades com a criançada do bairro, faz viagem missionária, coloca sua casa à disposição dos cultos, enfim, está ativo totalmente. Se canta, canta em todos os coros e conjuntos. Se fala, procura sempre uma brecha para dar uma palavrinha. Se ouve, é o mais atento de todos.

Ele chora, ah, como chora! É por demais emotivo! E são emoções fortes, sentidas! Quando ora, suas palavras calam fundo nos corações. Gosta de conversar com as pessoas. Ele é tido como alguém realmente tocado pela emoção, um animador! Nos cantos congregacionais, nos cultos da comunidade consegue dar um colorido especial às reuniões. Quem olha para ele diz: Que pessoa fabulosa!

Alguém me perguntaria: as pessoas que são assim são o diabo?

E eu responderia: Não. Pessoas assim são o sonho de toda igreja e o desejo de todo pastor. Eu só estou citando as coisas que o diabo TAMBÉM faz.

Para saber quem é o diabo em nossas igrejas precisamos avaliar O QUE O DIABO NÃO FAZ DE JEITO NENHUM, pois somente assim o descobriremos sem erro, com extrema precisão.

O diabo não vive o que canta. Ele canta bonito, canta afinado, canta com beleza, mas é um hipócrita. Ele canta que se deve amar, mas ele mesmo não ama. Todas as suas bondades são interesseiras, fruto da cobiça, visando interesses pessoais. Ele canta louvores, mas nunca agradeceu verdadeiramente a Deus nem uma xícara de chá. Ele não é coerente. Canta que se deve ter fé e não tem. Canta que se deve perdoar e não perdoa. Ele é um mentiroso. Seus cânticos são para aparecer, para mostrar voz, para fazer sucesso, para gravar CDs, para ser louvado. Canta puramente por profissão, ou por costume. O seu cântico é bonito, mas não tem vida, não é louvor. Ele emociona o auditório, mas não muda corações, não transmite nada, não tem unção do Espírito Santo.

O diabo só fala e nada faz. Ele é um impostor. É muito bom na teoria; talvez não exista alguém mais bem preparado do que ele para falar de seitas, de doutrinas, de céu, de inferno, de usos e costumes. Ele tem uma lábia de fazer inveja. Fala e fala bonito. Num debate não tem pra ninguém - vence todos! Mas quem mora com ele sabe que tudo não passa de fachada, de mentira, de hipocrisia, de casca. Ele veste uma capa de cristão para ir à igreja e a tira quando retorna. Ele diz que não se deve beber, e bebe. Ele diz que não se deve amaldiçoar, e amaldiçoa. Ele diz que não se deve adulterar, e adultera. Ele diz que não se deve deixar de dizimar, e não dizima. Ele é um joio, um falsário, um farsante. Em teoria é 10, em prática é 0, e com louvor!

O diabo é um ativista, mas não é um servo. Ele faz muito sim, mas faz para si próprio, pois não tem a menor consciência de estar servindo ao Senhor. Ele serve à igreja, ao pastor, à diretoria, à família, ao programa, mas jamais serviu a Deus. Deus não faz parte de suas prioridades. Ele faz da igreja um palco, já que não obteve sucesso nos palcos da vida. Ele quer ser na igreja o que nunca pôde ser enquanto trabalhador ou membro da família. Quer provocar medo nos mais novos, espanto nos mais velhos, acha que ganhará respeito trabalhando como um doido, criticando os jovens, corrigindo os idosos, insultando ao ministro da igreja. Jesus é apenas um detalhe, um pretexto. Gosta de ver seu próprio nome nas listas de diretoria, nos jornais, nas revistas, gosta de ser citado e tudo faz para se destacar. Mas ele não conhece a Cristo, seu trabalho é absolutamente vão, ele já está recebendo a sua recompensa.

Por fim, suas lágrimas não são sinceras; são lágrimas de crocodilo, falsas como uma nota de 6 reais. Chora fácil, é capaz de fingir como um artista experiente. Ele é digno de um Óscar! Consegue simular muita emoção junto de um irmão e em seguida atender a um telefonema com completa alegria e desembaraço, como se nada tivesse acontecido. Ele mente. Mente o amor para com o cônjuge, pois é capaz de jurar amores e traí-lo em seguida. Mente para o namorado, fazendo juras e postando declarações ilusórias, para, em seguida, mostrar-se traiçoeira. Mente aos filhos, porque ordena-lhes que sejam o que nunca foram e nem serão. O diabo chora quando tem que pedir perdão, mas faz tudo igual em seguida, e cada vez pior. Sua mente está cauterizada, seu coração endurecido, sua alma perdida e sua vida estragada. O diabo é absoluta e totalmente INGRATO, e faz questão que o cônjuge (ou ex) saiba disso.

O diabo pode fingir os dons espirituais, mas jamais poderá simular o FRUTO DO ESPÍRITO. Ele pode simular os chamados dons de sinais, pode derrubar todo um auditório com o poder de um sopro ou fazer pessoas manifestarem supostos "encostos", pode até curar supostas enfermidades, pode manifestar carismas imensos, mas é incapaz de amar de verdade, ter paz e transmitir a paz, desenvolver paciência, ser bom e benigno, ter domínio próprio ou ser fiel. Não, ele é um blefe. Ele é como um show pirotécnico, muitos efeitos, mas totalmente inóquos, sem a menor consistência, de nenhuma duração.

Não é nas coisas que faz que o diabo se faz conhecido. É NAQUELAS QUE NÃO FAZ! Por isso temos tanta dificuldade em identificá-lo, pois pensamos: " Ele canta, ele ora, ele participa, ele chora...", quando as perguntas deveriam ser: "Ele é real? Ele é sincero? Ele ama? Ele perdoa? Ele é leal? Ele é capaz de falar comigo olhando para os meus olhos? Ele reage como um crente? Ele é autêntico?"

Se você estiver procurando diabos em quem está fazendo alguma coisa, estará procurando no lugar errado e da forma errada. Jesus nos mandou não julgar, não procurar ciscos nos olhos dos outros. Mas leve a sua igreja à santificação, à consagração, leve o seu povo a um compromisso sério de ouvir e cumprir, de cantar e praticar, de sentir e agir, de ser carta aberta e gente sem segredos, e o diabo irá aparecer. Mais dia ou menos dia ele se manifestará. E não estrebuchará no chão, fazendo espetáculo: ele sairá fuzilando, irado, irritado, nervoso, atirando para todo lado. Pode ser que ele esteja disfarçado de linda e insinuante mulher, toda maquiada e perfumada. Ou num elegante homem de negócios, trajado socialmente dentro da mais fina moda. Talvez na pele de uma conceituada profetiza, de voz meiga e carinhosa, ou numa família dominadora. Pode surgir num jovem simulado, que faz muita pose no louvor, mas que é pura casca, ou mesmo num pastor, que fala bonito, mas que não vive o que prega, que só está interessado em fazer a igreja crescer, não fazê-la ser santa.

E se você ver o diabo, e estou falando do diabo-pessoa, diabo-gente, diabo-ser humano, como Jesus falou, ore por ele, para que seja convertido. Ele é servo do Diabo, o arqui-inimigo do povo de Deus. Os dias de Satanás estão contados, e ele faz tudo para destruir a Igreja do Senhor. Não vamos dar trégua - vamos resistir ao diabo, não com as armas das trevas, com ira, com ódio, com vingança, com maldições, com bate-bocas, com socos e pontapés. Vamos resistir ao Diabo sujeitando-nos a Deus, orando pelo próximo, não fazendo o seu jogo de hipocrisia. Agindo assim expulsaremos o Maligno. Não fazer a vontade do inimigo já é meio caminho andado. Se a tentação não tiver adeptos, ela murcha. Vamos secá-la!


O telefone tocou...

(adaptado do texto do Pr. Wagner Antonio de Araújo)

“O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece, não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal; não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (I Coríntios 13:4-7)

Alô?

Alô. Luciano?

Sim. Quem é?

Não conhece mais a minha voz?

Não estou conseguindo identificar. Quem está falando?

Nossa, como foi fácil pra você me esquecer... Acho que não tivemos muito significado...

Nathasha?!

Oi...

Que surpresa você me ligar! Pra quem disse que queria me esquecer para sempre ...

Vai ofender? Eu desligo!

Fique à vontade, querida. Quem ligou foi você mesmo...

Não, espere, não vou desligar. Desculpe. É que estou aborrecida, só isso.

Tá. E o que você quer?

Nada. Eu só queria ouvir sua voz.

Só? Então já ouviu. Mais alguma coisa?

Espere, pare de ser grosso. Não, desculpe, não desligue. É que eu estou me sentindo muito sozinha.

Foi você quem quis assim, querida. Sorva do seu próprio veneno.

Realmente você não muda. Só sabe acusar...

Bom, vou desligar. Tchau...

NÃO, PELO AMOR DE DEUS, não desligue, espere, preciso te dizer algo...

Fala logo, Natasha, tenho que trabalhar.

Eu estava errada. Me perdoe.

ERRADA? Você estava errada? Tem certeza disso? Será que não é um pouco tarde pra dizer isso?

Mas agora eu reconheço...Por favor, amor, me perdoe!

Agora? Depois que você acabou comigo, querida? Até hoje eu pago o mico do papelão que você me fez passar... Convites distribuídos, acampamento alugado, comida encomendada, viagem paga, meu casamento com você, tudo perdido... (Luciano suspira). Sofri, sofri mesmo. Queria matar você! Droga, por que eu tive que amar você? Mas tudo bem. Já faz dois anos... Ah, meu Deus, dois anos...

Luciano, pelo amor de Deus, me perdoe!

Pra que você quer o meu perdão? Você nem ligou pra dizer que já estava com outro cara. Pra que perdão? Vai viajar com ele, vai viver com ele, meu bem... Só me deixe em paz, por favor (Luciano chora baixinho).

Sem se dar conta, Luciano percebe uma pessoa na porta do escritório. Era ela. Natasha estava olhando pra ele. Ela falava do celular. Luciano fica perplexo, alegre e triste - ela está linda, belíssima, muito elegante. Mas seu rosto está abatido, cansado, doente. Na mão tinha uma sacola. Aproximou-se da mesa de Luciano, e, com olhos lacrimejantes, desligou o celular, olhou para ele e disse:

Oi, amor.

Oi, Natasha. Pare de me chamar de amor. Você tá um caco, filha!

Olhos baixos, Natasha começa a tirar da sacola algumas coisas: uma caixa do correio com um CD do Demmis Roussos, que Luciano havia enviado de presente no aniversário, uma boneca de porcelana numa casinha de papel, um celular pré-pago, alguns livros devocionais, uma bíblia de Genebra e um pacote de fotografias. Luciano a observava, perplexo, triste, e via as lágrimas de Natasha molharem a fórmica da sua escrivaninha.

Cada objeto tirado era uma facada no coração sofrido de Luciano. Algumas coisas lhe custaram caro, ele fizera grande esforço para pagá-las. Mas, pensava ele, se era pra ela, valeria à pena o esforço. Quando tudo terminara, ele se arrependera de tanto gasto desperdiçado...

Pensei que você havia jogado as coisas que lhe dei, Natasha...

Eu nunca me esqueci de você, Luciano. Eu errei. Errei muito, me perdoe...

Luciano, jovem advogado, lutador com as interpéries da vida, sabia que Natasha poderia estar mentindo, como tantas outras vezes, quando namoravam e mesmo quando eram noivos. Mas havia um quê de diferente no olhar vermelho de Natasha.

Por que você veio hoje aqui, Natasha? Deu alouca? O que te traz aqui?

Natasha suspirou, chorou, recompôs-se e disse:

Estou com câncer, Luciano...

CÂNCER? Luciano petrificou-se.

Sim, amor, eu vim me despedir. Saí do hospital à força, pra falar com você e pra morrer em casa...

Luciano não esperava por essa. Veio-lhe à memória uma de suas discussões, onde Natasha, na hora do nervoso, dissera: "E daí, Luciano? Que se dane a igreja, que se dane o pastor, que se dane você, e se Deus achar que estou errada, que me castigue..." Nossa, era como se a cena passasse de novo na mente de Luciano.

Como foi, Natasha?

Depois que eu deixei você, amor, fui caindo no abismo, afastei-me do Senhor, fui morar com o André, abandonei a Cristo. Eu estava cega. Mas Deus me amava, Luciano. Se eu não fosse dEle, estaria numa boa agora, bem com o André, bem comigo e pronta pra ir pro Inferno. Mas, por amor, Deus veio corrigir-me. Ele repreende e castiga a quem ama. Ele me ama, Luciano! Estou doente. Mas estou bem, porque estou podendo vir até você pra pedir perdão! Nunca fui feliz, nunca tive paz, saí de casa com 3 meses de vida a dois. O André me batia, me traía, eu fugi.

E ele não foi buscar você de volta?!

O André foi assassinado, Luciano. Tráfico de drogas.

Luciano estava perplexo.

Luciano, estou voltando pro Senhor, estou me preparando pra partir. Mas tenho que receber o seu perdão, amor! Sei que nunca irei compensar o que lhe fiz, mas... por favor... ME PERDOA, AMOR!

Luciano olhou para aquele resto de mulher - outrora tão orgulhosa, ostentando tanta beleza e auto-suficiência, confiando tanto em seu corpo e em sua fulgurante beleza, e agora, bonita ainda, mas notadamente pálida, enferma, cheia de hematomas nos braços, pescoço e pernas, e triste, profundamente triste, a implorar-lhe perdão para morrer em paz!

Cena patética! Ali estava quem Luciano mais amara na vida, quem mais o fizera sofrer, a depender de uma palavra apenas, para morrer em paz!

"Hora da vingança", veio-lhe à mente. Claro, agora seria a hora da revanche! Mas Luciano era um moço crente, de bom coração, e seria incapaz de reter a bênção para aquela a quem tanto amara e que, infelizmente, ainda tanto amava e tanto o fazia sofrer...

Quer que eu perdoe você, Natasha?

SIM, PELO AMOR DE DEUS, Luciano! Nunca mais tomei a Ceia do Senhor, nunca mais louvei ao Senhor com alegria, nunca mais fui membro de igreja, não agüento mais! Aceito as conseqüências, mas, por favor, diga que me perdoa!

Enxugando as lágrimas, refazendo-se, Luciano olhou-a no fundo dos olhos, tomou as suas duas mãos, que estavam frias como as de um defunto, e lhe disse, num terno sorriso misericordioso:

Querida: desde que você foi embora eu já havia lhe perdoado. Mas, se você quer escutar e sentir paz, ouça-me: EU PERDÔO VOCÊ POR TUDO QUE ME FEZ. VOCÊ ESTÁ LIVRE EM NOME DE JESUS!

Natasha tremeu. Gritou "aleluia", sorriu, chorou, e caiu desmaiada.

Logo o assistente de Luciano veio ajudá-lo, e, colocando-a no carro, levaram-na para o hospital. Luciano tinha o telefone de toda a família ainda, ligou e avisou. Em uma hora todos estavam ali na recepção, tristes, aflitos, alguns desesperados. Chegou o pastor. A família implorou-lhe que fosse até a UTI orar com ela. O pastor, que conhecia o Luciano, olhou bem pra ele, pensou, fechou os olhos em oração, e, a seguir, falou:

Quem tem que entrar é o Luciano. Vá lá, Luciano. Eu conheço o diretor da UTI, pedirei autorização.

EU, PASTOR?

Sim, filho. Ela é o seu amor.

FOI, PASTOR..

Não, filho. Deus o uniu a ela novamente, ainda que seja na despedida.

Luciano não sabia o que fazer. A família, desconsolada, chorava, mas a mãe, certa do que tinha que ser feito, empurrou o Luciano até a porta, dizendo: "Vai, filho, corre, antes que seja tarde!"

Ah, aquele corredor que dava para a UTI parecia não ter fim! Cada passo dado era uma lembrança: o primeiro beijo, a primeira maçã-do-amor, o primeiro jantar, o primeiro por-do-sol juntos; o dia em que viajaram num encontro missionário, o dia em que foram juntos à praia e que ele deu de presente a primeira rosa! O jantar de noivado, os telefonemas, tudo. Não sobraram recordações da tragédia, da traição, do desprezo. Na verdade quem ama guarda as más experiências numa sacola furada. E Luciano fez assim.

Vestido com o jaleco, a máscara e o sapato de pano, Luciano entrou. Vários boxes onde pessoas definhavam. Lá estava Natasha, no número 6. Estava no respirador artificial, cuja sanfona funciona como um pulmão e faz um barulho horripilante. Estava linda, mas totalmente ligada a aparelhos, notadamente cansada, em coma, morrendo. Luciano sentiu sua dor. Chorou. Tremeu. Segurou forte a mão de sua amada. Pensou em Cristo, que dera a vida pela noiva, pensou em Oséias, que aceitou a esposa adúltera novamente, pensou em Deus, que tantas e tantas vezes tratou a Jerusalém com compaixão. Quem era ele para não perdoar? Quem era ele para não acolher?

Então orou.

"Senhor, o que posso dizer? Minha garota está morrendo! Ex-garota, claro. Mas mesmo assim está doendo, Pai! E eu sou impotente diante de tudo isso! Essas máquinas, esse cheiro de éter e de carnes inflamadas, esse barulho infernal, meu Pai, o que posso dizer? Que deixe a minha garota morrer em paz? Sim, Senhor, leve-a para a tua glória! Eu a amo! Mas sei que tu a amas mais do que eu! Abençoa a Natasha. Em nome de Jes...

Subitamente Luciano pensou em completar a oração com o seguinte pedido:

"Mas, Senhor, se ainda houver um espaço para ela viver para ti, recuperar parte do tempo perdido, se na tua infinita misericórdia não for demais, por favor, Senhor, cura a tua serva. Ela já sofreu bastante, ela aprendeu, Senhor. Até eu, que fui o mais ofendido, já a perdoei! Por favor, Senhor, se der, devolve-lhe a vida! Mesmo que não seja pra viver comigo. E agora sim, em nome de Jesus. Amém".

Por favor, me avisem - disse Luciano aos familiares - , me avisem quando tudo terminar. Quero estar presente.

E foi embora. Tirou a tarde para viajar, seu hobby preferido: foi pra uma cidadezinha próxima, ver o por-do-sol.

PARTE FINAL

No caminho, ao longo da rodovia, seus pensamentos corriam mais que o vento: por que tudo isso estaria acontecendo? As coisas não poderiam ter sido mais fáceis? E agora? Ele, no carro, ela no hospital, a lembrança daquelas máquinas monstruosas de prolongar a vida não lhe saíam da memória... As lágrimas corriam, misturadas à poeira do vento seco do caminho.

Revoltado com tudo isso, parou o carro no acostamento. Encontrou uma estradinha de terra. Devagar, como a seguir um féretro, entrou pela rota dos sitiantes. Subiu devagar a montanha, encontrou um mirante. Parou, abriu a porta, e, num grito de dor e lamento, chorou. Ah, como chorou! Seu pranto escorria pela porta do carro. Os pássaros, assustados, aquietaram-se nas árvores, contemplando aquele misto de dor e revolta. Parecia que todo o mundo fazia silêncio em respeito a tanta dor.

Deus, por que? Por que? Por que? Por que tive que amá-la? Por que tive que vê-la? E agora, Senhor, o que fazer? E se tu a levares? O que será de mim? Eu já estava quase esquecendo, Senhor! Agora tudo volta a doer! Senhor, Senhor...

Cansado de tanto chorar, entrou no carro e deitou-se, estendendo o banco para o fundo. Travou a porta, colocou uma fita de música clássica e desfaleceu. Ali estava um moço de valor, que amava e que lutava entre sua vontade e a vontade de Deus.

Sonhou durante o sono, no delírio da febre. Sonhou estar na igreja. Viu o pastor a pregar, e, ao seu lado estava Natasha, bonita e sorridente. Lá do púlpito o pastor dizia: "Aquele que amar mais à sua mulher, mais do que a mim, não é digno de mim - palavras de Jesus!" E, aos poucos, o sorriso de Natasha foi sendo coberto por uma neblina e desaparecia. Assim acordou.

Assustado e cônscio de que Deus falara com ele, pôs-se a orar, dizendo:

Senhor, sei que é difícil, mas tenho que fazer isso. Confesso que estou revoltado, ó, Pai. Quero fazer a minha vontade, não a tua. Eu não estou conseguindo aceitar a tua vontade, caso seja a de levá-la embora! Sei que estou errado, Senhor, e sei que é isso que quisestes me falar. Senhor, sou teu servo e quero te obedecer. Se irás tirar a Natasha mais uma vez, tira-a, apesar de mim. Por mais que isso doa, Senhor, prefiro assim: não quero perder-te Senhor. Só me ajude e console o meu coração... Tu sabes o que será melhor para ela, e também melhor para mim. Em nome de Jesus, amém.

Voltou a dormir.

Toca o celular.

Alô?

Luciano?

Sim, sou eu.

Aqui é o pastor, filho. Como você está?

Bem mal, pastor. Mas sobrevivendo...

Eu orei por você, garoto. Pedi a Deus para lhe fazer suficientemente forte para renunciar, se preciso for. Você quer conversar sobre isso?

Pastor - disse, sorrindo o rapaz, - já o ouvi pregar agorinha mesmo no sonho, já renunciei a Natasha. Está doendo, mas estou em paz. Obrigado.

Ótimo. Então volte pro hospital, Luciano. A Natasha acordou e saiu do estado crítico. Ela quer ver você...

O QUE??? SÉRIO, PASTOR?

Séríssimo. Vem com calma, mas acelera, filho...

Não levou hora e meia e Luciano estava entregando a chave do carro pro manobrista do hospital.

E a Natasha? , perguntou à mãe dela.

Filho, corre, ela está chamando por você! Vai, filho! Deus está agindo! Eu já a vi, mas ela teima que quer ver-lhe!

Agora o corredor do hospital era longo demais para ele. Se pudesse, daria três passos em um, para chegar mais rápido e contemplar o rosto de sua amada. Seu coração estava disparado, pensava no que ouviria e no que diria. O suor lhe escorria pela face e as vistas estavam enfumaçadas. Correu a vestir o jaleco, o sapato de pano, as luvas e a máscara. Box 06. Lá estava ela, e três médicos palestrando. Ao olharem o rapaz, perguntaram:

Você é o Luciano?

Sim, doutor, sou eu. Por que?

Converse um pouco com ela. Ela gritou o seu nome por mais de meia hora e nos deixou quase loucos! Isso é que é amor! Mas seja breve, ainda não entendemos essa súbita melhora. Temos que medicá-la novamente.

Aproximou-se do leito. Os lábios de Natasha estavam sangrados, a boca ferida, canos haviam saído da garganta, o pescoço estava com fios, braços e pernas com soro, sondas, enfim, uma cena dramática, mas não tanto quanto na última vez. Pelo menos o respirador artificial estava desligado, e em silêncio...

Lu..cia..no.. me.u...a..mor....

Fala, querida, eu estou aqui!

Je..sus....veio..a..qui! Eu..vi!

Luciano deixou as lágrimas verterem de seus olhos, lágrimas quentes e profundas.

Você estava sonhando, querida.

Nã..ão, meu ..a..mor, Je..sus veio...me di..zer.. uma..coi..sa!

Um tanto alegre, mas também incrédulo, Luciano pergunta:

E o que Jesus lhe disse, amor?

Dis.se...que.. vo..cê..me ama..va e..que..es.ta...va... (cof! cof!) es..ta..va. orando lá..num sí..tio.. por..mim...e ..lu..tan..do ...para me renun..ciar..

Luciano gelou. Natasha completou:

E..le.. me..dis..se..que..a.ceitou..a.sua..or.a..ção!

Agora ele estava arrepiado. Não só isso, ele estava com as pernas totalmente moles e adormecidas, num misto de medo e perplexidade.

E sobre você, amor, ele disse alguma coisa?

Dis.se..pa..ra....que..eu não ...pe..casse.. de nno..vo... - Natasha adormeceu.

Natasha!!! Natasha!! Não morra!!!

Calma, garoto - disse o médico - ela só adormeceu. Fique tranqüilo, mas saia agora, temos que seguir os procedimentos necessários.

E assim foi.

Natasha saiu do hospital em 20 dias. Sem explicação convincente, os médicos quiseram impetrar a si mesmos um erro de avaliação e diagnóstico,dizendo que pensaram que havia câncer onde nada existia, mas não sabiam explicar as dúzias de exames, de biópsias, de ressonâncias e de quimioterapias feitas. Claro, grande parte da medicina desconhece o poder de Deus, a misericórdia do Altíssimo. E um câncer desaparecido tem que parecer um mero "erro médico". Mas o milagre acontecera de fato...

Outra tarde, fim de expediente no escritório de Luciano, Natasha de pé em frente à escrivaninha de trabalho dele.

Luciano, de agora em diante eu viverei cada dia como um milagre do Senhor, e viverei apenas e tão-somente para a glória dele.

Que bom, Natasha! Espero que você seja feliz! Orarei sempre por você!

Luciano...

Fale, querida.

Quero pedir só mais uma coisa.

Se eu puder atender...

Eu quero me casar com você e ser a sua mulher, a sua companheira, e servir ao Senhor ao seu lado. Eu te amo! Me perdoe por tudo que fiz!

Era tudo o que o rapaz queria ouvir. Sorridente, abriu a gaveta da escrivaninha e tirou uma linda boneca de porcelana, numa casinha de papelão, idêntica à primeira, presenteada quando começaram a namorar. Levantou-se, entregou-lhe a boneca, abraçou sua amada pela cintura, trazendo-a para junto de seu rosto, e lhe disse, com um brilho jamais visto em seu olhar:

Eu perdôo você e quero recebê-la como minha esposa, amor. Eu te amo!

Também te amo, querido!

Não se podia descrever o que era mais bonito e brilhante; se o brilho do sol da tarde, clareando toda a sala pelas vidraças, ou se o brilho do beijo de Natasha e Luciano, ao som da mais linda música que o mundo pode ouvir: o palpitar de dois corações apaixonados. Aliás, apaixonados por Deus primeiramente, e, por causa do Senhor, apaixonados um pelo outro...

REFLEXÃO: “Antes sede bondosos uns para com os outros, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo” (Efésios 4:32)
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